"Toda arte é uma revolta contra o destino do homem" André Malraux (1901-1976), escritor francês
André Malraux profetizou: "O século XXI será religioso ou não será."
Cada uma das grandes religiões trouxe uma noção fundamental do homem, e nosso tempo esforça-se apaixonadamente por dar forma ao fantasma que o século das maquinas colocou em seu lugar. Tanto mais apaixonadamente quanto, com os campos de exterminação, com a ameaça atômica, a sombra de Satã reapareceu sobre o mundo, ao mesmo tempo que reaparecia no homem: a psicanálise redescobre os demônios, para reintegrá-los no indivíduo. Mas, num mundo sem chave, onde o Mal se torna fundamental enigma, qualquer sacrifício, qualquer obra prima, qualquer ato de piedade ao heroísmo propõem um enigma tão fascinante quanto o do suplicio da criança inocente, obsessão de Dostoievsky: quanto o de todos os pobres olhos humanos que descortinaram uma câmara de gás antes de se fecharem para sempre: a existência do amor, da arte ou do heroísmo não é menos misteriosa que a do mal. Quiçá a aptidão do homem para concebê-los ou conservá-los invencivelmente seja um de seus "componentes”, como o é a aptidão para a inteligência: e o objetivo de nossa civilização, no âmbito do espírito, se torna, assim, depois de ter descoberto as técnicas que reintegram os demônios no homem, o de buscar as técnicas que reintegrariam nele os deuses.
Mas a reconquista da grandeza esquecida assume a forma que lhe dão os que a asseguram. É que cada nação a preserva a seu modo - e tende a agrupar-se, não com todas as outras, mas com algumas afins, em vastas áreas culturais. A nova civilização se manifestará de certo no Ocidente, não só sob sua forma russa, mas sob duas grandes formas que corresponderão, «grosso modo», as áreas católicas e protestantes. De cada uma dessas formas, do novo tipo de homem por elas suscitado, posso aqui dizer, como em Atenas: pertencerão a todos os que tiverem resolvido criá-las juntamente: o espírito não conhece nações menores, conhece apenas nações fraternas - e vencedores sem vencidos.
Eis aí onde a cultura encontra seu papel insubstituível. Pelo conhecimento, mas também por outros caminhos mais secretos. A cultura não consiste somente em conhecer Shakespeare, Victor Hugo, Rembrandt ou Bach: consiste antes de mais nada em amá-los. Não há cultura verdadeira sem comunhão, e talvez seu domínio mais profundo e mais misterioso seja a «presença», em nossa vida, do que deveria pertencer à morte. A cultura do novo mundo latino - que não é apenas o grande e velho mundo mediterrâneo, que não é somente a América Latina - será, como todas as verdadeiras culturas, uma cultura conquistada. O que ela deve conquistar para criar seu tipo de homem exemplar e para moldar seu novo passado é a presença, em seu seio, de todas as formas de arte, de amar, de grandeza e de pensamento que, no curso de milênios, sucessivamente permitiram ao homem «ser menos escravo»: o domínio que une, ao fundo de nossa memória, sob a imensa indiferença das nebulosas, as silhuetas invencíveis e outrora inimigas dos pescadores de Tiberíade e dos pastores da Arcádia... O império mais sangrento do mundo, o império assírio, deixa em nossa memória a majestade de sua «Leoa ferida»: se há uma arte dos campos de concentração, ela não exprimirá os carrascos e sim os mártires. "Ergue-te Lázaro". Não sabemos ressuscitar os corpos, mas começamos a saber ressuscitar os sonhos - e o que hoje vos propõe a França, é que, para todos nós, a cultura seja a ressurreição da nobreza do mundo.
Reconheçamos que nos une um futuro fraterno, mais ainda que um passado comum. Tivestes razão, nas mais sombrias horas, quando não desesperastes de nós, porquanto, hoje, o General De Gaulle, que encontrou todas as chagas de meu país em seu legado, reencontra, apesar dessas chagas, a linguagem secular da França, para lembrar ao mundo que “é o homem que se trata de salvar". Porque a cultura tem duas fronteiras intransponíveis: a servidão e a fome. Que nos seja dado contribuir para apagá-las, que nos seja dado construir uma civilização que se assemelhe à nossa esperança, uma civilização que coloque todas as grandes obras da humanidade ao serviço de quantos homens as reclamarem!
Haveis pronunciado aqui, Sr. Presidente da República, palavras conhecidas de muitos dentre nós:
«Deste planalto central, desta solidão que será em breve o cérebro de onde partirão as altas decisões nacionais, lanço um olhar, uma vez mais, sobre o futuro de meu país e entrevejo essa alvorada com fé inquebrantável e confiança sem limites na grandeza de seu destino».
Quando, por minha vez, contemplo este lugar que já não é uma solidão, acodem-me ao espírito as bandeiras que o general De Gaulle entregou, em 14 de julho, aos chefes dos Estados da comunidade franco-africana, e o solene cortejo de sombras dos mortos ilustres da França, que amais, porque seus nomes pertencem à generosidade do mundo. E em sua grande noite fúnebre, um murmúrio de glória acompanha o bater das forças que saúdam vossa audácia, vossa confiança e o destino do Brasil, enquanto se vai erguendo a capital da esperança.
André Malraux, ministro dos assuntos culturais da França
Brasília, 24 de Agosto de 1959
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