sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Palavra final

image%5B105%5D[1] Chegamos ao fim de uma era. O Cristianismo virou uma página e ao longo dos anos ficará cada vez mais claro o momento de transição que vivemos. O velho se vai e novo já vai tomando forma.

Francis Schaeffer representa o velho. Embora tenha de alguma forma contribuído para o surgimento do novo ele mais fez fortalecer o velho.

O velho, e roubo aqui parte do debate de Paulo Brabo no Lançamento de seu Livro "Bacia das Almas", é expresso pela mentalidade de que a fé estaria baseada num livro. Esta é a velha mentalidade, que tem como paladino FS e, em sua forma mais extrema, uma série de fundamentalistas (a maioria em continente norte americano).

Aparentemente, com a teologia liberal e tantas outras correntes que contestariam o fundamentalismo, pode-se pensar que essa mudança já havia ocorrido há mais tempo e não seria nada novo. Provavelmente foi Schleiermacher (que não é nem citado por Schaeffer) quem deu o ponta pé inicial nas mudanças. FS, todavia, se desponta (nos anos 70) como a voz do movimento evangelical para dar legitimação intelectual às crenças fundamentalistas.

Ricardo Gouvea assim expressou sua análise do livro de Schaeffer:

A intelectualidade evangélica adotou este livro como alicerce nos anos 70, para enfrentar o existencialismo, o movimento "hippie", o marxismo e a contracultura em geral. O livro convencia que o cristianismo não era incompatível com o estudo e a reflexão. É um pena que Schaeffer estivesse tão equivocado em suas idéias centrais.

Assim a mudança de era foi prorrogada. Mas chegamos até ela. Um dos principais sinais dessa mudança se viu nas eleições presidenciais americanas e a derrota da direita evangélica. Mas não é só isso.

Voltando à frase de Brabo, ele argumenta bem que não se pode fechar uma pessoa em um sistema de palavras. Ou seja, Jesus que é a verdade na qual a fé cristã se assenta, vai além das palavras do livro. Eu particularmente deduzo disso que a fé judaico-cristã não é de fato baseada num livro, mas o livro, sim, é baseado na fé judaico-cristã. Daí sua vital importância.

É lamentável que Francis Schaeffer comece por Aquino e passe por uma série de personalidades da história somente pescando desacordos e tentando apontar desatinos em suas filosofias e maneiras de ver o mundo.

Ao longo desse Blog e da leitura que fiz de "A morte da razão" pude ver que, ao contrário do que FS afirmava, cada um deles tinha alguma contribuição interessante para a fé cristã.

A tese central de Francis Schaeffer é de que a razão humana, sem o apoio da Bíblia, estaria morta. Esse teria sido o erro de Aquino, acreditar que haveria razão viva sem a Bíblia. Uma vez baseado na Bíblia poder-se-ia argumentar em termos racionais com qualquer pessoa. E era justamente essa a tarefa dos crentes frente ao desafio do homem moderno, mostrar que a fé é racional, desde que baseada na Bíblia.

Aquela tese, tão comumente aceita nas fileiras evangélicas, se mostrou todavia falha, na prática. Não só por causa do fiasco que foi George Bush. Tanto nos USA como no Brasil, proliferaram escândalos de todo tipo protagonizados por pessoas, e fundamentados racionalmente por pessoas, que tinham a Bíblia como sua única regra de fé e prática.

A fé, descrita pela própria Bíblia, muitas vezes prescinde do elemento racional. Hora ela o aceita, hora (e são muitas essas vezes) o rejeita. Daí a necessidade d'o salto' (tão combatido por FS).

A era pós-moderna chegou e trouxe com ela esse subjetivismo que permite ao indivíduo vivenciar sua fé, de acordo com os (ou além dos) limites de sua própria racionalidade. Não há como extrair do ser humano o elemento existencialista descoberto por filósofos franceses e tantos outros.

Esse é o desafio que se coloca frente à igreja cristã de nosso tempo: como se reinventar em uma lógica onde a Bíblia (e as pregações) não seja mais o centro da vida comunitária (ou da fé comunitária)?

Minha sugestão fica (contra)baseado em outro título de Francis Schaffer: "um Deus que fala". É hora da igreja recolocar a tônica no Deus dos antigos que era primordialmente "um Deus que ouve".

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

André Malraux

Malraux-Freund-1935[1] "Toda arte é uma revolta contra o destino do homem" André Malraux (1901-1976), escritor francês

André Malraux profetizou: "O século XXI será religioso ou não será."

Cada uma das grandes religiões trouxe uma noção fundamental do homem, e nosso tempo esforça-se apaixonadamente por dar forma ao fantasma que o século das maquinas colocou em seu lugar. Tanto mais apaixonadamente quanto, com os campos de exterminação, com a ameaça atômica, a sombra de Satã reapareceu sobre o mundo, ao mesmo tempo que reaparecia no homem: a psicanálise redescobre os demônios, para reintegrá-los no indivíduo. Mas, num mundo sem chave, onde o Mal se torna fundamental enigma, qualquer sacrifício, qualquer obra prima, qualquer ato de piedade ao heroísmo propõem um enigma tão fascinante quanto o do suplicio da criança inocente, obsessão de Dostoievsky: quanto o de todos os pobres olhos humanos que descortinaram uma câmara de gás antes de se fecharem para sempre: a existência do amor, da arte ou do heroísmo não é menos misteriosa que a do mal. Quiçá a aptidão do homem para concebê-los ou conservá-los invencivelmente seja um de seus "componentes”, como o é a aptidão para a inteligência: e o objetivo de nossa civilização, no âmbito do espírito, se torna, assim, depois de ter descoberto as técnicas que reintegram os demônios no homem, o de buscar as técnicas que reintegrariam nele os deuses.

Mas a reconquista da grandeza esquecida assume a forma que lhe dão os que a asseguram. É que cada nação a preserva a seu modo - e tende a agrupar-se, não com todas as outras, mas com algumas afins, em vastas áreas culturais. A nova civilização se manifestará de certo no Ocidente, não só sob sua forma russa, mas sob duas grandes formas que corresponderão, «grosso modo», as áreas católicas e protestantes. De cada uma dessas formas, do novo tipo de homem por elas suscitado, posso aqui dizer, como em Atenas: pertencerão a todos os que tiverem resolvido criá-las juntamente: o espírito não conhece nações menores, conhece apenas nações fraternas - e vencedores sem vencidos.

Eis aí onde a cultura encontra seu papel insubstituível. Pelo conhecimento, mas também por outros caminhos mais secretos. A cultura não consiste somente em conhecer Shakespeare, Victor Hugo, Rembrandt ou Bach: consiste antes de mais nada em amá-los. Não há cultura verdadeira sem comunhão, e talvez seu domínio mais profundo e mais misterioso seja a «presença», em nossa vida, do que deveria pertencer à morte. A cultura do novo mundo latino - que não é apenas o grande e velho mundo mediterrâneo, que não é somente a América Latina - será, como todas as verdadeiras culturas, uma cultura conquistada. O que ela deve conquistar para criar seu tipo de homem exemplar e para moldar seu novo passado é a presença, em seu seio, de todas as formas de arte, de amar, de grandeza e de pensamento que, no curso de milênios, sucessivamente permitiram ao homem «ser menos escravo»: o domínio que une, ao fundo de nossa memória, sob a imensa indiferença das nebulosas, as silhuetas invencíveis e outrora inimigas dos pescadores de Tiberíade e dos pastores da Arcádia... O império mais sangrento do mundo, o império assírio, deixa em nossa memória a majestade de sua «Leoa ferida»: se há uma arte dos campos de concentração, ela não exprimirá os carrascos e sim os mártires. "Ergue-te Lázaro". Não sabemos ressuscitar os corpos, mas começamos a saber ressuscitar os sonhos - e o que hoje vos propõe a França, é que, para todos nós, a cultura seja a ressurreição da nobreza do mundo.

Reconheçamos que nos une um futuro fraterno, mais ainda que um passado comum. Tivestes razão, nas mais sombrias horas, quando não desesperastes de nós, porquanto, hoje, o General De Gaulle, que encontrou todas as chagas de meu país em seu legado, reencontra, apesar dessas chagas, a linguagem secular da França, para lembrar ao mundo que “é o homem que se trata de salvar". Porque a cultura tem duas fronteiras intransponíveis: a servidão e a fome. Que nos seja dado contribuir para apagá-las, que nos seja dado construir uma civilização que se assemelhe à nossa esperança, uma civilização que coloque todas as grandes obras da humanidade ao serviço de quantos homens as reclamarem!

Haveis pronunciado aqui, Sr. Presidente da República, palavras conhecidas de muitos dentre nós:

«Deste planalto central, desta solidão que será em breve o cérebro de onde partirão as altas decisões nacionais, lanço um olhar, uma vez mais, sobre o futuro de meu país e entrevejo essa alvorada com fé inquebrantável e confiança sem limites na grandeza de seu destino».

Quando, por minha vez, contemplo este lugar que já não é uma solidão, acodem-me ao espírito as bandeiras que o general De Gaulle entregou, em 14 de julho, aos chefes dos Estados da comunidade franco-africana, e o solene cortejo de sombras dos mortos ilustres da França, que amais, porque seus nomes pertencem à generosidade do mundo. E em sua grande noite fúnebre, um murmúrio de glória acompanha o bater das forças que saúdam vossa audácia, vossa confiança e o destino do Brasil, enquanto se vai erguendo a capital da esperança.

André Malraux, ministro dos assuntos culturais da França
Brasília, 24 de Agosto de 1959